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Impressões sobre a Rússia Soviética e o Mundo Revolucionário

 

                                                                                                                                                                                                    Carlos Lucena

                                                                                                                                                     Lurdes Lucena

 

    Há mais de dez anos conversamos descontraidamente com nosso velho e sábio amigo José Carlos Souza Araújo sobre temas relativos à Filosofia da Educação. Aquela animada conversa traduzia nosso interesse nos princípios educacionais adotados na Rússia nas três primeiras décadas do século XX. Debatíamos a centralidade da educação na revolução bolchevique tomando como referência o pensamento de Pistrak. Confabulávamos sobre as possíveis influências da Escola Nova e da Pedagogia Ativa na formação educacional soviética e as mudanças ocorridas na Rússia após a morte de Lênin e a subida de Stalin ao poder por volta de 1927.

    Contudo, em meio às nossas inquietações, José Carlos nos sugeriu a leitura de um pequeno livro publicado em 1928 e redigido originalmente em Língua Inglesa, cujo título era “Impressions of Soviet Russia and the Revolutionary World” de autoria de John Dewey. Essa obra consistia na redação das impressões de John Dewey por ocasião de sua visita à Rússia Soviética junto com um grupo de educadores para conhecer os fundamentos da educação soviética. Essas impressões foram registradas em um conjunto de artigos publicados na Revista New Republic em novembro e dezembro de 1928. A publicação registrou, também, um conjunto de visitas de Dewey realizadas na Alemanha, China, Japão, Sibéria, Turquia, México, cujas impressões não estão aqui registradas.

    A Revista New Republic registrou as preocupações de Dewey sobre os rumos da educação no início do século XX. Tomando como referência suas investigações no âmbito da educação infantil e da psicologia, entendia que a maior parte das escolas, mesmo com as profundas transformações em curso na sociedade mundial, ainda mantinha métodos retrógrados que não incorporavam as descobertas científicas no âmbito da psicologia infantil. Essa constatação impulsionou John Dewey a viajar pelo planeta visando conhecer as novas experiências educacionais que estavam em curso para incorporá-las nas escolas estadunidenses. Essas viagens se realizaram em alguns casos como forma de consultorias internacionais e, em outros, como visitas técnicas, como foi o caso de sua ida à Rússia Soviética, tal qual demonstrado nesse livro.

    A leitura do referido livro nos inquietou. Confessamos que, em princípio, tivemos dificuldade em conceber uma arguição escrita por um dos principais expoentes do escolanovismo no século XX e toda sua fundamentação epistêmica liberal. Não imaginávamos encontrar ali tamanho esforço de crítica e análise científica expressa em uma inegável autonomia intelectual.

   As primeiras páginas sobre a Rússia Soviética demonstraram um Dewey incrédulo com o que encontrara e começava a conhecer. Percebíamos ali um duplo sentido de reflexão e análise. Por um lado, o estarrecimento de Dewey ao descobrir que fora enganado sobre o conteúdo que publicavam sobre a Rússia Soviética nos Estados Unidos. Por outro, nosso próprio estarrecimento provocado pela inquietação de imaginar onde Dewey queria chegar. Confessamos que se fôssemos proferir um título a essas poucas páginas que aqui escrevemos o intitularia como “Nossas impressões sobre as impressões de John Dewey sobre a Rússia Soviética e o mundo revolucionário”.

    O estarrecimento por ser enganado envergonhou Dewey. A luta para romper com os seus próprios preconceitos fomentados pelo anticomunismo nos Estados Unidos acompanhou todos os artigos publicados sobre a Rússia Soviética. Isso se explica em função de um processo em movimento manifesto pelo significado internacional da revolução bolchevique para o capitalismo e o consequente movimento de resistência e negação da burguesia internacional, tendo como principal veículo, a imprensa escrita e falada.

    A revolução de 1917 foi um marco para a construção de uma proposta comunista até então inédita na sociedade. Com a revolução bolchevique, Lênin assumiu o governo russo em um cenário de disputas internas e conflitos inerentes à 1ª Grande Guerra Mundial. 

    Com o advento da revolução russa, o czarismo, com apoio dos países centrais capitalistas, instaurou uma guerra civil contra o governo bolchevique com milhares de mortos pelo ensejo e pela fome. Só os Estados Unidos enviou 13000 soldados no verão de 1918 para se somarem ao Exército Branco objetivando, sem sucesso, sufocar a revolução russa. A guerra se estendeu até o final de 1921, quando o exército vermelho, sob o comando de Leon Trotsky, derrotou os setores conservadores revoltosos.

    A revolução comunista na Rússia representou uma mudança no equilíbrio e nas disputas econômicas e políticas em âmbito mundial. O avanço do comunismo em âmbito internacional influenciou movimentos sociais, mobilizações de rua, greves e manifestações.  A possibilidade da expansão do bolchevismo pela Europa acirrou suas críticas em âmbito internacional. Essas críticas foram elaboradas por diferentes atores, merecendo destaque os setores civis e religiosos. Uma forte propaganda anticomunista ganhou corpo em âmbito internacional, sustentadas na crueldade, ineficiência e satanismo do sistema bolchevique.

    Nos Estados Unidos, a falência à repressão ao bolchevismo marcou a construção de uma postura anticomunista agressiva por parte do Senado. Na prática, ele criou comissões e audiências voltadas à iniciativa de uma ofensiva anticomunista no país. O objetivo foi fomentar o horror ao comunismo perante toda população estadunidense como forma de evitar possíveis simpatias e insurreições internas. O historiador, Frederick Lewis Schuman, escreveu: "O resultado líquido destas audições retratava a Rússia Soviética como uma espécie de tumulto habitado por escravos abjetos completamente à mercê de uma organização de maníacos homicidas e criminosos cujo objetivo era destruir todos os traços de civilização e levar a humanidade de volta à barbárie”.

   Os relatos eram variados. Alguns deles faziam referência às mulheres, família e a maternidade. Divulgados intensamente por todos os canais de imprensa nos Estados Unidos e aliados europeus e fomentados por intelectuais que receberam vultosas somas de dinheiro para esse fim demonstravam a situação de opressão imperante na Rússia Bolchevique. As histórias variavam em torno de relatos de mulheres que tinham seus filhos retirados pelo Estado. Muitas eram obrigadas a realizar casamentos impostos pelo Estado e o sexo livre contra a sua vontade. Algumas, em virtude da fome, se alimentavam da carne de seus próprios bebês recém-nascidos.

    A propaganda anticomunista nos Estados Unidos é exemplificada em uma extensa reportagem publicada no Jornal “The Lewiston Daily”, em 25 de junho de 1930, fazendo referência às relações sociais opressivas construídas pela juventude russa, embasadas no pensamento de Anton Karlgren citado por Dewey no livro em questão. O jornal faz referência a como o bolchevismo atuou para doutrinar a juventude russa em torno dos seus ideais políticos, cujas ações resumimos nos parágrafos a seguir. 

    A juventude russa foi apresentada como composta por dois grupos principais. O primeiro é denominado como Komcomon – Konsomol em inglês – termo derivado da contração de Kommunisticheskiy Soyuz Molodiozhi ou União da Juventude Comunista. O segundo, União Pioneira, composto por adolescentes similares aos escoteiros nos Estados Unidos. As aldeias russas eram responsáveis pelo fornecimento de 45 por cento dos membros de todos os komsomois que viviam a expectativa de compor os quadros do Partido Comunista no futuro. O Professor Anton Karlgren da Universidade de Copenhagen em seu livro, Rússia bolchevista, afirma que “o fato dos jovens pensarem em se juntar ao Komsomois e a União Pioneira possibilitará que a próxima geração de camponeses renuncie sua oposição ao bolchevismo. A adesão destes jovens aldeões a essas organizações significa aceitar as convicções comunistas”.

   Karlgren afirma que os Komsomois e os pioneiros têm entre seus deveres a divulgação da propaganda Bolchevique e a supressão da religião. Na Rússia, enquanto os jovens membros do grupo da Juventude Pioneira entendem o sistema comunista como uma espécie de “contos de fadas”, os Komsomois, especialmente aqueles que ainda vivem nas aldeias, exercem o poder de liderança no local. Eles faziam o que queriam e ninguém ousava criticá-los nos locais mais distantes de Moscou. A interferência em sua autoridade é definida como uma ofensa à antirrevolucionária.

    A caracterização dos bolcheviques como a perversão do “mal” foi utilizada como justificativa para difundir o medo sobre a possibilidade de sua expansão para todo o planeta. A propaganda anticomunista implicou em uma implacável doutrinação daqueles que estiveram sob sua influência. Seus objetivos foram voltados a atingir todas as classes sociais, estendendo-se aos livros escolares, sermões religiosos, princípios familiares, entre outros. Sua ação visou inculcar na sociedade a existência de uma grande maldição instaurada sobre o planeta, cujos comunistas se apresentavam com uma espécie de exército de Satã voltado a corromper a moralidade, difundir o medo e governar todo o planeta sob a Constituição da tirania e da maldade. A construção de uma conspiração satânica, o apocalipse terreno por seguidores do anticristo – os comunistas – para escravizar toda a humanidade.

Essa concepção, composta dos “comunistas” contra os “não comunistas” difundiu-se no centro e na periferia do planeta. Esta visão dos super-homens justos americanos lutando contra o mal comunista em toda parte se formou a partir de uma cínica propaganda do imperativo moral da política externa dos EUA. John Foster Dulles, um dos principais arquitetos do pós-guerra política externa dos EUA, expressou sucintamente estes princípios: "Para nós, existem dois tipos de pessoas no mundo: aqueles que são cristãos e apoiam a livre empresa e os que não são”. 

    O conteúdo das páginas descritas anteriormente é fundamental para o entendimento das impressões de Dewey sobre a Rússia Soviética e o Mundo Revolucionário. O apelo do anticomunismo influenciou sua interpretação daquilo que imaginava ser a Rússia Bolchevique. Daí, o seu estarrecimento por se sentir enganado. Dewey percebe que o anticomunismo carrega consigo a negação da possibilidade de conhecer e da própria cientificidade. O forte conteúdo ideológico do anticomunismo ressaltado pela demonização de um modelo de sociedade inédito na história da humanidade impedia de se tirar lições de suas experiências que possibilitariam melhorar as condições de vida de milhares de seres humanos.

   A análise sobre a educação russa tem essa perspectiva. As interpretações distintas expostas em suas impressões com possíveis imprecisões, algo que Dewey ressalta em todos os artigos produzidos sobre o tema em questão, manifestam a busca incessante pela descoberta de novas pedagogias, independente de estarem vinculadas a concepções epistêmicas às quais nunca acreditou e combateu cientificamente, como a ortodoxia marxista.

    A busca por novas pedagogias possibilitou Dewey a  desenvolver comparativos entre aquilo que pensava ser a Rússia Bolchevique e o que realmente era. As visitas a Leningrado e, posteriormente, Moscou, possibilitaram a elaboração de um conjunto de impressões sobre as formas de viver e os princípios educacionais formativos dos russos. Essas inquietações levaram Dewey a formular sua primeira impressão manifesta na afirmação que o ocidente não entendera o que realmente acontecia naquele país.

Dewey desenvolveu a hipótese de que a Rússia Bolchevique significava um processo de transformação com essência moral e psicológica e não política e econômica como acreditavam os próprios bolcheviques, cujos resultados no futuro poderiam ser diferentes do que seus atores imaginavam. Essa era uma análise inovadora, pois, por um lado, questionava o fim do capitalismo e, por outro, desmontava a tese do anticomunismo. Essa afirmação foi formulada tendo como ênfase dois pilares fundamentais e até então novos na sociedade russa: o trabalho e a educação.

   Dewey percebe o crescimento de uma lógica produtiva expressa no trabalho cooperativo. Embasado nos pressupostos de liberdade e participação oriundos do pensamento liberal nos séculos XVIII e XIX, entende que o trabalho cooperativo apresenta um potencial de envolvimento e poderio de decisão coletiva que revolucionaria toda a sociedade russa. Em um esforço de entendê-lo dentro dos pressupostos históricos aos quais seus processos sociais se apresentavam, concebeu o trabalho cooperativo como uma iniciativa inovadora, uma forma produtiva com potencial de formar coletivos humanos com capacidade de gerir suas próprias vidas, entendendo o sentido e a finalidade do que e para que produzir.

    As percepções sobre o trabalho cooperativo fundamentaram o entendimento de como funcionava a educação na Rússia. A relação entre o trabalho e a educação permitiu com que Dewey estabelecesse comparativos entre a Rússia Bolchevique e os Estados Unidos. Contudo, suas novas impressões sobre a relação entre o trabalho e a educação em curso no país, permitiram que fizesse uma descoberta sobre a origem epistêmica dos processos educacionais adotados na própria Rússia Bolchevique. As visitas às aldeias, as conversas com Nadezda Krupskja e outros educadores russos, o acesso às estações educativas experimentais e suas fórmulas de trabalho cujos resultados eram utilizados à intervenção no mundo material com objetivo único de melhorar incondicionalmente a vida dos russos, desvelou que os fundamentos epistêmicos daquela ação pedagógica tinham suas origens em seu próprio país.

   A contradição entre a decepção e a alegria demonstrada por Dewey é comovente na leitura do livro em questão. Por um lado, a decepção em descobrir que essas pedagogias apresentavam resultados extremamente satisfatórios em um país que era alvo de constante desmoralização nos Estados Unidos. O preconceito desenvolvido pelos educadores estadunidenses os impedia de conhecer os resultados satisfatórios das formas pedagógicas criadas em sua própria nação, cujos resultados atestavam avanços em superar os problemas crônicos na Rússia que na virada do século XIX para o século XX era composta por um coletivo de analfabetos que se aproximava a oitenta e cinco por cento de toda a sua população. Por outro lado, a alegria, em virtude de a viagem permitir o acesso à descoberta de novas pedagogias infantis com possibilidade concreta de utilizar seus fundamentos para a melhoria das condições de ensino nos Estados Unidos e demais países que delas tivessem acesso.

    Essa descoberta impulsionou Dewey a compreender as condições objetivas responsáveis pelo êxito educacional na Rússia Bolchevique, apesar do ainda número restrito de mulheres e homens russos por elas atendidos. A crítica ao anticomunismo como algo falseado e ausente de cientificidade atentou a essas prerrogativas. Em outras palavras, Dewey atribuiu que muitas pesquisas, na ânsia de seguir a onda anticomunista, apresentaram resultados falseados sobre a Rússia Bolchevique desmoralizando a objetividade e sentido científico. Todas as ações dos bolcheviques só seriam entendidas se fossem submetidas aos processos históricos que a criaram.

    As condições objetivas permitiram constatar como se davam as formas de envolvimento dos professores com as questões russas e os princípios curriculares educacionais utilizados no país. Elas fundamentaram Dewey a concluir que o sucesso educacional das propostas que até então conhecerá tinha como fundamento a centralidade da educação nos planos de desenvolvimento russos propostos no presente e para o futuro. Tendo como referência a busca do acesso social aos resultados científicos, a educação assume um papel preponderante nos rumos futuros da sociedade.

   Essa impressão não se deu ao acaso. Retomando o pressuposto de que ocorria na Rússia uma revolução de cunho moral e psicológico, Dewey constata um nível de envolvimento com as questões sociais russas até então inéditas, algo que denomina como “essência religiosa”, comparando-a com uma espécie de “Cristianismo Primitivo”. Temos a impressão que essa “essência religiosa” se refere à formação de uma formidável militância que buscava via processo educacional, os fundamentos para transformar a Rússia Bolchevique e o mundo. A educação passa a ser entendida como uma poderosa ferramenta de transformação social. A sua relação dinâmica com o trabalho produz uma nova cultura responsável pela construção de formas de sociabilidade humanas por excelência. Nesse processo de construção do humano em seu sentido mais pleno, os professores concebem sua profissão como proferida de sentidos e objetivos sociais e matérias.

    Ressaltamos que apesar dos elogios de Dewey aos avanços sociais conquistados na Rússia Bolchevique, ele não rompe com seus pressupostos epistêmicos e nem realiza qualquer aproximação com a teoria marxiana e marxista. Seu otimismo não consistiu na defesa da eficiência de um regime político por outro. Tanto o é que demonstra alívio de o conjunto das experiências bolcheviques ocorrerem na Rússia e não nos Estados Unidos.

   A experiência na Rússia Bolchevique suscitou a Dewey por um lado, a internacionalização da experiência educacional russa como forma de adaptá-la aos Estados Unidos, melhorando as condições de ensino e aprendizagem em seu país natal. Por outro lado, dado ao próprio período histórico em questão marcado pelos processos preliminares da construção da crise econômica que levou ao Crack da Bolsa de Valores de New York em 1929, o crescimento do Nazismo e do Fascismo acompanhado da instauração de um conjunto de conflitos e contradições que levaram à instauração da 2a Grande Guerra Mundial, Dewey raciocinou na possibilidade de aperfeiçoar o liberalismo por meio de fundamentos encontrados na Rússia. Em outras palavras, dada a sua impressão que estava em curso na Rússia um processo social diferente do que pretendia a ortodoxia marxista, imaginou ter encontrado ali novos pressupostos de liberdade e participação que fomentaria o liberalismo nos Estados Unidos, destacando o papel central em reinventar a educação para que todo esse processo fosse possível. 

Convidamos todos vocês à leitura do livro em questão, traduzido agora da Língua Inglesa para a Portuguesa. Acreditamos que sua leitura possibilitará que construam suas próprias impressões e indagações sobre o passado e o presente da Rússia Bolchevique, os rumos tomados e os não tomados e seus respectivos motivos. O convite está feito.

 

 

 

 

 

 

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