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Coleções

Textos sobre Educação e Ensino 

Karl Marx e Friedrich Engels

 

 

 

Marx e Engels nunca escreveram um texto - folheto, livro ou artigo - dedicado expressamente ao tema do ensino e educação. Suas referências sobre estas questões aparecem separadas ao longo de sua obra, tanto nos escritos de sua juventude como nos de sua maturidade, tanto nos Manuscritos como em O Capital. A partir de sua produção não é possível "levantar" um sistema pedagógico ou educativo completo e elaborado. 

 

Isso não quer dizer, no entanto, que as referências sejam simples opiniões conjunturais, e, enquanto tais, perfeitamente desprezíveis do ponto de vista teórico. É certo que muitas vezes tratam-se de opiniões al filo dos acontecimentos, porém não é à toa que, no geral, as afirmações conjunturais de Marx e Engels não perdem nunca de vista a generalidade, tanto de seu pensamento quanto da circunstância histórica. Nem um nem outro foram políticos pragmáticos ou realistas, tal como esses termos são entendidos atualmente. Sua inflexível não renúncia aos princípios é proverbial e não pode ser ignorada.

 

Precisamente por isso, as afirmações sobre educação e ensino, como as que fizeram sobre arte e literatura, dificilmente podem nos servir para a atual polêmica em torno dos problemas do ensino, convertidas, como costuma acontecer com os argumentos no curso das polêmicas, em armas audaciosas. Mas nos servirão para um eventual debate sobre a índole e as condições para a configuração de um horizonte histórico no qual as relações de dominação tenham desaparecido.

 

Muitas destas opiniões e análises breves surgiram como uma crítica às situações que o capitalismo - e concretamente a manufatura - tinham produzido. Ora, esta crítica nunca foi uma reconvenção moral ou uma tentativa de "reajustar" a situação, de fazê-la mais coerente. Inclusive quando as referências são explicitamente concretas - como é o caso da intervenção na Internacional (24) ou as críticas ao sistema escolar inglês ou prussiano (31, 32, 33) -, a crítica se desprende do imediato e estabelece um marco de referência bem distinto: uma sociedade sem classes, uma sociedade na qual todos os cidadãos sejam realmente iguais e as relações de dominação brilhem por sua ausência. Pensamos que este é o ponto que dá razão de um interesse: a leitura atual destes textos.  

 

Este procedimento não é exclusivo de Marx e Engels, e seria injusto ignorá-lo ou pretender o contrário. A primeira metade do século XIX se caracteriza pelo estabelecimento e a traumática consolidação de um modo de produção, o capitalismo, e uma formação social, burguesa, que vai não só encontrar críticas circunstanciais, mas também abundantes contestações globais. Todo o movimento utópico - socialista e anarquista, a cuja justa reivindicação estamos assistindo - se baseia na construção de modelos, alguns terminados até com detalhes excessivos, que contestam o que está sendo estabelecido. No seu seio, a educação é um aspecto prioritário e acuciante. A falta de atenção às necessidades sociais no campo da educação e ensino, que é própria dos primeiros anos do capitalismo - e que todavia arrastamos -, unida às dramáticas condições de trabalho da população operária - acentuadas no caso do trabalho infantil e feminino - colocam o ensino e a educação em primeiro plano.

 

Todos os socialistas utópicos, todos os anarquistas chamaram atenção sobre estes aspectos e, ainda mais, confiaram no ensino e na instrução como instrumentos de transformação. A emancipação dos indivíduos, sua libertação das condições opressoras só poderia se dar quando tal emancipação alcançasse todos os níveis, e, entre eles, o da consciência. Somente a educação, a ciência e a extensão do conhecimento, o desenvolvimento da razão, pode conseguir tal objetivo. Aparecem aqui muitos dos tópicos - os melhores - do pensamento ilustrado, que se impuseram não só por razões de autoridade ou peso acadêmico e intelectual, mas também diante da efetiva transformação das pessoas a que induziam.

 

Marx e Engels não foram, nem poderiam sê-lo, alheios a esta atmosfera. Seu conflito com o socialismo utópico, pôde motivar um esquecimento injusto de suas propostas igualmente utópicas. Foi necessária uma ampla revisão, uma profunda transformação das pautas do debate marxista, para que esses aspectos voltassem a ter a importância que exigem. Trata-se - e esperamos que seja perceptível para os leitores da presente antologia - de transformar radicalmente nosso meio.

 
2. OS TEMAS 

Os textos da antologia incidem sobre uma série de temas, alguns dos quais já foram sugeridos. Existe um que se destaca sobre os restantes, inclusive pela sua extensão: a divisão do trabalho e seus efeitos. A divisão do trabalho (1, 8), consubstancial ao processo de implantação do modo de produção capitalista, é o eixo sobre o qual se articulam as colocações de Marx e Engels, em tomo do tema da educação e do ensino. Estabelece uma divisão, igualmente radical, entre os tipos de atividade e os tipos de aprendizagem, prolongandose em uma divisão social e técnica que interfere no desenvolvimento do indivíduo e constitui o ponto chave dessa trama em que se produz a exploração dos trabalhadores.  

 

A divisão do trabalho é, historicamente, exigida pelo processo do trabalho manufatureiro ou industrial. O desenvolvimento da máquina incorpora a esta a habilidade do oficio e os conhecimentos que antes residiam no - e eram possessão do - trabalhador. Desta forma, a ciência e os conhecimentos passam a ser propriedade do capital, e o trabalhador se encontra enfrentando-os. Tal como indica Engels, "vigiar as máquinas, renovar os fios quebrados, não são atividades que exijam do operário algum esforço do pensamento, ainda que, por outro lado, impeçam que ocupe seu espírito em outra coisa" (7). Este é um ponto do qual se deduzem, pelo menos, duas consequências: por um lado, está na base do enfrentamento de classe; por outro, é o fundamento de uma limitação substancial do desenvolvimento do indivíduo. Se a primeira alude diretamente à exploração - a apropriação dos meios produtivos e da ciência e da cultura com eles, permite a exploração - a segunda afeta substancialmente a educação e formação dos indivíduos - a limitação de seu conhecimento mutila e reprime o desenvolvimento de suas faculdades criadoras. Eis aqui o "gozno" sobre o qual se articulam dois aspectos habitualmente separados do pensamento de Marx e Engels: emancipação social e emancipação humana.

 

Em princípio, parece possível fazer dois tipos de argumentações e oferecer dois tipos de dificuldades. Existe um bastante simples: se é certo que com o desenvolvimento do maquinismo, a ciência e a técnica se incorporam à máquina, é certo também que o desenvolvimento desta introduz uma série de exigências de qualificação da força de trabalho que traz consigo a aparição, consolidação e auge do sistema escolar institucionalizado. Outra mais complexa: se é certo que com o desenvolvimento do maquinismo se incorporam à máquina todas aquelas habilidades, isso não faz mais que afetar a força de trabalho, e não a capacidade criadora do homem.

 

Mas parece oportuno fazer frente agora a cada uma destas dificuldades e afirmações, não tanto por um afã polêmico, mas porque no curso da contestação se esclarecem alguns dos aspectos centrais do pensamento de Marx e Engels.  

 

É evidente que a primeira é a constatação de um fato imbatível. Longe de introduzir um maior nível de incultura, o capitalismo exigiu uma crescente capacidade intelectual de todos os indivíduos, estendendo o sistema escolar, institucionalizando-o e aprofundando-o. Os índices de analfabetismo se reduzem drasticamente na medida em que as sociedades agrárias se transformam em industriais, a indústria da cultura experimenta um auge importante e a fisionomia cultural da sociedade muda radicalmente em relação aos séculos anteriores. Neste terreno parece que as afirmações dos utopistas, e de Marx e Engels, se movem no vazio. E mais, parece que em todos eles existe uma certa nostalgia do artesão perdido.

 

Talvez exista alguma nostalgia do artesão perdido nos socialistas utópicos, porém, não em Marx e Engels. Sua pretensão não é retomar a situações pré-capitalistas nem criar o oásis do précapitalismo e artesanato na sociedade industrial. Sua pretensão não é terminar com a escola para voltar a uma instrução natural (isto é, uma instrução tampouco natural como a proporcionada pela Igreja, a família tradicional, os meios burgueses de comunicação etc.). Marx e Engels não pretendem voltar atrás, mas sim ir em frente; não pretendem voltar ao artesanato, mas sim superar o capitalismo, e essa superação só pode se realizar a partir do próprio capitalismo, acentuando suas contradições, desenvolvendo suas possibilidades.  

 

Neste caso, não se trata de voltar à situação pré-escolar, à instrução baseada na leitura bíblica ao amor do fogo, muito pelo contrário. As propostas de Marx e Engels se movem num horizonte bem concreto: criticar a atual instituição escolar e mudá-la. 

 

Marx e Engels escreveram num momento em que o desenvolvimento das forças produtivas era reduzido. Sabe-se que os primeiros tempos da industrialização se caracterizaram pelo aumento do trabalho simples - com a perda da capacidade artesanal existente - a extensão do trabalho infantil e feminino em condições de vida inferiores às existentes nas formações sociais agrárias. Porém, não ignoraram que, primeiro, esta situação teria de ser transitória e, segundo, que o desenvolvimento cultural era necessário para a consolidação e posterior desenvolvimento das forças produtivas. Suas referências às necessidades da burguesia e à incapacidade de boa parte desta para assumi-la, são um bom exemplo desta colocação (31, 34). Sua concepção não se reduz ao simplismo de enviar outra vez as pessoas para o campo - como se a vida no campo não fosse igualmente miserável -, mas o que pretende é corrigir a situação e colocar as bases de um modo diferente. Reivindicações tão concretas como "ensino gratuito e obrigatório" para todas as crianças, muito conhecida no Manifesto, é também conhecida em outros textos (41), a delimitação do trabalho das crianças, adolescentes e mulheres (24, 27) etc., vão por esse caminho. Sua preocupação em introduzir um novo tipo de ensino, unindo o trabalho manual ao intelectual, pretende estabelecer as bases de um sistema novo que terminará com a ideologização da ciência e as estruturas familiares e educativas estabelecidas.

 

Estavam conscientes das necessidades culturais - científicas e técnicas - das forças produtivas que a sociedade industrial havia posto em marcha; isto se manifesta quando lemos suas opiniões sobre o comportamento da burguesia francesa, inglesa e alemã; porém, estavam conscientes também da incapacidade desta em resolver os problemas colocados e da exclusiva capacidade do proletariado para levá-los a bom termo (24, 27, 31, 33 e 40). Esta é a perspectiva com que Marx e Engels abordam o tema do ensino e educação: a da classe operária.  

 

Ambos procuraram fugir de colocações abstratas, excessivamente gerais ou excessivamente vagas. A situação que lhes interessa é a dos trabalhadores e o modelo em que pensam é o de uma estrutura social onde os trabalhadores tenham a hegemonia, onde desapareça a divisão do trabalho e a felicidade substitua a necessidade. Para chegar até aí, não se deve voltar atrás, deve-se caminhar adiante.  

 

A segunda dificuldade e argumentação a que fizemos referência é mais complexa. As afirmações iniciais pressupunham a identificação de força de trabalho e capacidade criadora, identificação que de nenhuma maneira está verificada e que dificilmente pode ser aceita. 

 

Com efeito, Marx e Engels levaram a cabo esta identificação, ainda mais, combateram por ela como uma das bases fundamentais de suas propostas revolucionárias. Ao longo da história, e muito especialmente depois da instalação definitiva da concepção cristã, a sociedade veio mantendo uma noção cindida do homem. Cindido entre o divino e o humano, o indivíduo ia introduzir uma segunda cisão (que podia ter ou não justificativa e fundamento naquela primeira) entre o trabalho e o gozo. O desenvolvimento da revolução industrial faz desta divisão a base do sistema de trabalho e sua organização social. A diferença entre tempo de trabalho e tempo livre aumenta à medida em que a manufatura ocupa todos os espaços da produção.  

 

Até certo ponto, cabe dizer que a trajetória intelectual de Marx e Engels vai por um caminho crítico que atravessa estas mesmas etapas. Nos primeiros textos sobre A Questão Judaica ou A Sagrada Família se ocupam da crítica da alienação religiosa - no seio do debate pós-hegeliano, que tanta importância teve na época e que está na base de sua formação filosófica e intelectual em geral -, chegando, em profundidade crítica, a analisar a alienação produzida pela exploração.

 

Talvez seja nos Grundrisse onde Marx explicitou de maneira mais clara suas propostas em torno da necessidade de assimilar força de trabalho e capacidade criadora dos homens. O modo de produção capitalista se caracteriza pela exploração; isto é, pela apropriação da força de trabalho. O capital se apropria da força de trabalho e a objetiva, a realiza a fim de gerar mais-valia. Trabalho produtivo é aquele que gera mais-valia (35). Ora, por ele mesmo o capital somente se apropria daquela força de trabalho que pode gerar mais-valia, procurando que toda força de trabalho esteja em condições de gerá-la. Esse "estar em condições de" é obtido através da qualificação com um ensino adequado. Mas, como só é possível realizar a exploração através do mercado, orienta a qualificação para aquelas atividades ou formas (no seio de uma atividade) que tem maior acesso e predicamento no mercado. O sistema de ensino é entendido, assim, como uma concreta qualificação da força de trabalho que alcançará seu aproveitamento máximo se conseguir também o ajuste e a integração dos indivíduos no sistema, única maneira de não desperdiçar sua força de trabalho, mas sim, aproveitá-la. Dito de outra forma: reproduz o sistema dominante, tanto a nível ideológico quanto técnico e produtivo.

 

A qualificação da força de trabalho encaminha-se para a produção; a educação ideológica, que atura o que explicitamente lhe é superposto (especialmente nos primeiros níveis do sistema escolar), as quais são atacadas duramente por Marx e Engels (42), pretende um ajuste ou integração social. Nada próprio sobra ao indivíduo e dificilmente suportaria tal pressão se não fosse compensado por um tempo de ócio, seu tempo livre, aquele em que pode fazer o que quiser, desenvolver sua capacidade criadora, suas inclinações, suas práticas pessoais... Limitadas serão umas inclinações, que só contam com o autodidatismo, separadas de sua força de trabalho, pobres resíduos de uma capacidade criadora exausta após a jornada de trabalho.  

 

Ainda que tenham surgido algumas das incidências que esta situação produz no sistema de ensino, parte do sistema educativo, é conveniente que nos estendamos um pouco mais sobre elas.

 

Antes de mais nada, é necessário assinalar que o aparato escolar levantado pelo modo de produção capitalista se configura ideologicamente não só em função dos componentes explicitamente - tematicamente - ideológicos que comporta, mas também porque cria - e consolida - um marco de cisão onde a alienação da força de trabalho é um fato natural. A educação não se produz somente no seio das disciplinas "não úteis" que possam dividir-se nas chamadas matérias humanísticas, mas, muito especialmente, na organização de todo o sistema. Daí que a luta pela transformação do sistema não se leve a cabo contra esta ou aquela ideologia, senão contra o caráter ideológico que possui sua própria estrutura (o que não impede que eventualmente se combata esta ou aquela ideologia, precisamente a que tematiza e defende aquele caráter), tal como Marx e Engels colocam em relevo. 

 

Tudo isso não faz mais que nos reconduzir ao ponto inicial, porém agora com um conhecimento maior: a relação entre a divisão do trabalho e a educação e o ensino não é uma mera proximidade, nem tampouco uma simples consequência; é uma articulação profunda que explica com toda clareza os processos educativos e manifesta os pontos em que é necessário pressionar para conseguir sua transformação, conseguindo não só a emancipação social, mas também, e de forma muito especial, a emancipação humana.  

 

Dada sua importância, este tema se estende praticamente a todas as reflexões de Marx e Engels sobre o ensino, sobretudo àquelas - abundantes - que criticam o trabalho infantil e feminino, o trabalho dos adolescentes e as que expõem a necessidade de introduzir um sistema educativo que elimine a situação dominante. Parece-me oportuno assinalar aqui que Marx e Engels vangloriam-se de um conhecimento exaustivo da legalidade' existente e da realidade concreta que estão denunciando. Também neste ponto se movem no âmbito próprio dos socialistas utópicos e dos primeiros socialistas. 

 

Propõem uma série de transformações dentre as quais distinguimos duas perspectivas diferentes: a curto e médio prazo e a longo prazo. A curto e médio prazo são algumas das propostas que Marx faz em sua exposição diante do Conselho Geral da AIT em agosto de 1869, ou em sua Crítica do Programa de Gotha (39); enquanto que uma transformação a longo prazo se vislumbra nos Princípios do Comunismo, de Engels, já citados, ou nas precisões de Marx a propósito da Comuna (40). 

 

3. ALGUNS TEMAS POLÊMICOS  
Além dos temas resenhados, nos textos de Marx e Engels sobre educação e ensino, aparecem outros que estão na mais candente atualidade. Entre todos, o mais interessante me parece ser o que se refere ao "ensino estatal".  

 

O desenvolvimento da revolução industrial e o triunfo do liberalismo trouxeram consigo uma transformação fundamental do aparato escolar. Até então, a educação familiar, gremial e religiosa, havia sido dominante e suficiente. A instrução nos centros especializados estava limitada a poucas disciplinas - medicina, direito, gramática - e era uma atividade claramente minoritária. As necessidades tecnológicas produzidas por mudanças ocorridas nas forças produtivas e, por outro lado, as exigências liberais de entender a educação e o conhecimento como condição da igualdade entre todos os cidadãos determinaram a institucionalização, extensão e profundização do aparato escolar. 

 

Nos países em que isso foi possível, o ensino passou paulatinamente a depender do Estado, posto que se considerou como uma necessidade social que os cidadãos teriam de satisfazer pelo simples fato de serem cidadãos. Porém, esse processo se realizou com uma lentidão considerável e se foi obtida foi, precisamente, pela pressão do movimento operário, que neste e em outros setores, colocou em primeiro lugar reivindicações que conduziram a uma igualdade efetiva de todos os cidadãos. Somente no final do século, começa a consolidar-se um aparato escolar de dependência estatal, gratuito e amplo, e somente em alguns países - França, por exemplo. Em outros - na Espanha a incapacidade da burguesia e do Estado burguês - ou sua especial estrutura - motivou um processo muito mais complexo e quebrado onde amplos setores privados se encarregaram de fazer o que os poderes públicos não podiam e/ou não queriam realizar. Desta forma, o aparato escolar adquiriu, nos diferentes países europeus, uma fisionomia muito diversa, ainda que no século atual a tendência à homogeneidade começa a ser mais intensa.  

 

Desde o princípio viu-se que o ensino podia converter-se em um dos meios fundamentais de dominação ideológica e, portanto, em um instrumento essencial para alcançar e consolidar a hegemonia da classe no poder. O estado de classe estava intimamente ligado ao ensino de classe. Ainda que não sem tensões, o aparato escolar se convertia em um apêndice da classe dominante. As instituições tradicionais da sociedade pré-capitalista europeia, a família, o grêmio, a Igreja, entram em decadência e algumas - o grêmio - desaparecem. Ao longo da história, estas instituições haviam sido o instrumento de reprodução ideológica - além de ter outras funções que agora não vêm ao caso. Sua decadência acentuou-se pelo auge dos meios de comunicação de massas, que se converteram no marco, por excelência, da reprodução. Ora, as condições culturais das massas não eram, em princípio, muito adequadas para esse crescimento. O analfabetismo, geral no campo e muito extenso nos núcleos urbanos, tornava inviável o rápido estabelecimento de tais meios. Nestas circunstâncias, o aparato escolar apresentava vantagens óbvias e que foram imediatamente aproveitadas pela burguesia.

 

Este é o contexto em que Marx repudiou a intervenção do Estado (42). Sua preocupação parece clara: que a burguesia não conte, além de outros poderes, com o de um aparato escolar posto a seu serviço, diretamente controlado por ela. No entanto, me parece justo fazer algum tipo de precisão a propósito desta argumentação de Marx, pelo menos as seguintes: 

 

Marx e Engels não colocam em dúvida a função de responsáveis que as instituições públicas têm com respeito à educação. Neste sentido, assinalam a necessidade de certo grau de centralização para evitar o "taifismo" do sistema escolar. O Estado no qual pensam Marx e Engels, o Estado burguês do século passado, possui uma estrutura e funções que não podem ser identificadas com as do atual.

 

O desenvolvimento dos aparatos do Estado, a pressão do movimento operário e das reivindicações populares, as próprias necessidades da burguesia e, também, suas reivindicações, complicaram extraordinariamente a configuração e funções do Estado moderno. Seu caráter de classe - que não seperdeu - não aparece tão simples e monolítico como no século XIX.

 

A crítica da dependência escolar do Estado não tem somente aspectos negativos. A proposta sugerida é de sistema de gestão não burocrático, com a intervenção direta da população trabalhadora através de seus delegados e num marco de democracia direta, tal como colocam em relevo suas indicações, já assinalados a propósito da Comuna de Paris.

 

Somente este tipo de caracterização permitirá utilizar com algum rigor os escritos de Marx e Engels no debate atual sobre a problemática educativa no nosso país. 

4. MARX E ENGELS COMO PONTO DE PARTIDA

Tal como foi assinalado inicialmente, as referências de Marx e Engels não constituem nenhum sistema pedagógico. Ainda mais, muitos autores negam que estes escritos possam reunir-se sob uma rubrica de caráter estritamente pedagógico, pois em todos os casos trata-se de escapar às estritas limitações que coloca a educação entendida como mera prática escolar. Este é, talvez, um dos pontos relevantes que convém destacar: se as opiniões de Marx e Engels não constituem um sistema, estabelecem um marco e abrem vias por onde o sistema pode começar a construir-se. Nesse marco, um dos pontos chaves é, justamente, a rotunda negativa de reconhecer a educação como um fato estritamente escolar e considerar a atividade escolar como um fenômeno autossuficiente e independente. 

 

O leitor da presente antologia verá o grande interesse de Marx e Engels em aclarar, em todos os casos, a complexa articulação que se dá, por um lado, entre formas educativas escolares e não escolares e, por outro, entre atividade escolar e meio histórico. Esse interesse não é gratuito nem arbitrário, tal como foi posto em relevo pela evolução da pedagogia contemporânea, propícia a cair em um pedagogismo de primeiro grau. Porém, não se trata tampouco, como já sugerimos, da mera constatação de uma relação, mas sim de uma análise concreta através da divisão do trabalho nas formações sociais capitalistas. 

 

O marco que estas referências abriam seria captado por autores e práticas muito diversos dentro do marxismo. Alguns (as) já se consideram entre os clássicos, outros (as) estão num processo de revisão e debate que constitui um poderoso estímulo para a formulação de uma teoria marxista da educação e ensino.  

 

Entre os primeiros, parece possível destacar a presença de Antônio Gramsci, que introduz uma 'série importante de novos fatores e analisa profundamente o tema da educação com relação a um problema sempre presente em seus textos: a hegemonia do proletariado. Entre os segundos, não é arriscado mencionar práticas e escritos tão diferentes como os de Proletkult e Makarenko. Em um ou no outro caso, a necessidade de atender não só à precária situação educativa da URSS nos anos imediatamente posteriores à Revolução de Outubro, mas também de colocar as bases para a construção de um novo homem, de uma nova sociedade e uma nova história, são motivos que desenvolvem esse ponto de partida que foram Marx e Engels.  

 

Entre nós, a necessidade já incontestável de acabar com uma educação e um ensino que se considera como adestramento da força de trabalho, da integração social, da exploração, coloca em primeiro lugar a adequação da leitura de Marx e Engels e de suas propostas em torno da transformação mais radical da atual divisão do trabalho. 

 

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