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A Procissão de Cinza dos Terceiros Franciscanos da Bahia: uma expressão religiosa, pedagógica e barroca no mundo colonial.

Ana Palmira Bittencourt Santos Casemiro 

 

É sabido que no processo de conquista colonial a Igreja Católica exerceu, no Brasil, papel fundamental. Decifrar o emaranhado históricocultural no qual a religião se tornou poderoso instrumento de dominação é o objetivo maior da autora do presente trabalho. Mas, o percurso a ser seguido é original, com um tratamento relacional que se dá à arte, à mentalidade e à religião. O tempo histórico é de meados do século XVII ao último quarto do XVIII. 

 

O pretexto da pesquisa foi a Ordem Terceira de São Francisco da Bahia e as procissões, com destaque para a Procissão de Cinza: “uma religiosidade faustosa, aparente, superficial, teatral, proselitista, que tinha como meta iludir, extasiar, encantar, amedrontar o fiel...”. 

 

CASIMIRO fez farto levantamento de fontes primárias, de bibliografia especializada, bem como analisou visualmente o monumento religioso, as alfaias, os paramentos usados nas procissões e as imagens que resistiram ao passar do tempo.

 

A exposição dos resultados da diligente e disciplinada investigação é no mínimo bastante instigante. As relações entre o altar e o trono são configuradas na sua complementariedade e contradições das quais ambos os poderes se beneficiavam política, ideológica e materialmente. Se o Estado tinha os seus agentes, a Igreja possuía suas ordens religiosas e juntos se puseram a Dilatar a Fé e o Império. 

 

O quadro socioeconômico da Bahia, e de certa forma de toda a colônia, é apresentado de maneira a destacar, dentre outros aspectos, a prática da escravidão que foi essencial para o enriquecimento dos grupos dominantes. A escravização dos negros, com todas as implicações de tal prática, é o ponto mais nevrálgico da colonização e o conflito de classes sociais não pode ser esquecido. Também não é possível ignorar o lugar social que coube ao clero naqueles tempos: lugar privilegiado, com hierarquia própria e condizente à hierarquia laica. Afinal, Conquista e Missão andavam juntas e não foi por menos que se estabeleceu o direito do Padroado. 

 

O altar e o trono unidos no poder político e na materialidade socioeconômica também se somavam ideologicamente. A apresentação descritiva e analítica das ideias, leis, práticas e moral da época bem o demonstram. “As relações entre a religião católica e a educação formal apresentaram uma convergência fortíssima e se tornaram mais estreitas, ainda, porque eram mediadas pelas manifestações artísticas barrocas”. É então destacada a inserção da ordem franciscana naquela lógica colonizadora. 

 

As ordens terceiras franciscanas foram, por sua vez, associações religiosas de leigos que se organizaram em confrarias ou irmandades para a prática de atos de piedade ou de caridade. A pesquisa viabilizou uma longa apresentação da organização e da legislação que se propôs às ordens terceiras.

 

A Ordem Terceira de São Francisco da Bahia destacou-se, contraditoriamente ao espírito de pobreza propalado nas origens franciscanas, por posses grandiosas de bens, riquezas e lucros. 

 

Como resultado, as festividades e atos solenes se exerceram a cada ano com mais pompa e esplendor, tanto pela condição financeira da ordem, cada vez mais sólida, como pelo próprio gosto dos irmãos em bancar as despesas avulsas com uma religiosidade aparente e competitiva, se bem que nem por isso menos piedosa.

 

Quando a Ordem Terceira, formada por uma verdadeira elite econômica de homens brancos, ganhou sua Igreja nos anos de 1702-03, no centro histórico de Salvador Colonial, ela foi construída como uma obra barroca. CASIMIRO se dedica a interpretar a escolha por aquela opção estética. 

 

Na sequência, os rituais conhecidos por procissões são lembrados quanto à sua origem, história e, à época sobre a qual a pesquisa se dedicou, também pelo formato que assumiram da estética barroca, com muito fausto e esplendor. A forma barroca correspondia a certas exigências de homens de elite da colonização e da própria colonização. Sua manifestação atingiu várias dimensões culturais. Quanto às procissões nos surpreende o rígido controle da hierarquia religiosa sobre elas, mas as razões se tornam óbvias: eram plenas de aspectos pedagógicos e contemplavam, em forma de reprodução simbólica, as profundas desigualdades sociais.

 

Reunindo bibliografia especializada, a autora traz vários relatos e descrições sobre as práticas impressionantes das muitas procissões que várias ordens religiosas realizavam, como se fosse uma divisão de tarefas entre elas, de modo a manter a religiosidade sempre presente. Mais uma vez sobressaltam-se os aspectos pedagógicos das procissões. 

 

Quanto à ordem terceira dos franciscanos, a procissão de cinzas ou da Penitência era a mais importante que promoviam. Sobre aquelas realizada na Bahia, a bibliografia registra documentação dos seus “primórdios, datas, gastos, imagens, andores, intenções, querelas, apogeu e decadência...”. Era a grande penitência após o entrudo que sempre se distinguia por sua imponência prestigiosa. As descrições sobre os rituais, amealhadas pela autora, são muito sugestivas e esclarecedoras quanto aos seus possíveis significados. A procissão de cinza “era das mais representativas do espírito barroco do homem colonial”.

 

Um dia, e por razões de toda ordem, veio a decadência e o fim das procissões, mas fica evidenciado que, nas complexas relações socioculturais do Brasil colônia, a religião, a educação e a arte tiveram um papel fundamental.

 

O trabalho competente de CASIMIRO é muito oportuno para a historiografia da educação brasileira e acrescenta qualitativamente conhecimentos. Trará também certo “encantamento” ao leitor pela sua originalidade.

 

José Luís Sanfelice

Unicamp/FE/DEFHE

Primavera de 2011

 

 

 

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